Entre idas e vindas

Recentemente me (re)acendeu a vontade de comentar um pouco mais do longa-metragem Estrangeiro, do diretor estreante Edson Lemos Akatoy, na qual tive a honra de conhecer na sessão do seu filme no CineSesc São Paulo em dezembro de 2019.

Nesta revisão, eu gostei ainda mais do filme, na medida em que o “mergulho” se fez novamente, quase que com a mesma intensidade da primeira vez, na telona do cinema. Aliás, isso é o que me causa sempre mais e maior admiração pelo filme: valorizo demais obras que conseguem, de modo muito pleno, quando “saímos” deles, que estranhemos tudo o mais: parece que voltamos – bem literalmente – de uma viagem e o nosso entorno, o conhecido e o familiar é que nos soa, justamente, estrangeiro.

Confirmaram-se para mim seu enorme poder de sedução cinematográfica e os pequenos “senões”, que já haviam me distanciado um tiquinho do filme, por um lado ficaram mais claros e por outro, paradoxalmente, me “afastaram” muito menos dele, em relação à primeira vez. Antes de mencioná-los (sem nenhuma pretensão “crítica”, só a partilha do mais simples, inerente à pessoalidade da minha experiência com o filme), referirei o que gosto imensamente.

Primeiro, a diversidade de vozes narrativas e o seu suceder e entrecruzar “estranho”, desde o início do filme! A voz masculina, no prólogo, me pareceu perfeita (inclusive pelo fato, essencial a meu ver, de ela não voltar mais) para dar o tom de “entrada” no universo imaginário e imagético, principalmente no sentido de que ela, a voz, potencializa a sensação (e não o “gênero”, como absurdamente, li que chegaram a questionar) expressa no título da obra.

Por conta dessa diversidade de vozes e figuras, o que surge para nós, na primeira meia hora, quarenta minutos de filme, é a força de uma fabulação aberta ao impreciso dos diversos modos de inquirir e olhar para o mundo, continuamente desdobrada e não marcada ou atribuída a este ou aquele personagem identificável e “situável” numa linearidade narrativa. Trata-se da senha – maravilhosamente inexplicável, como toda senha que se preze – para o mergulho!

Daí que adoro quando, no aeroporto, no segundo capítulo (“Todas as coisas do mar”) e com a narrativa já um pouco centrada na personagem principal, ela pergunte à outra moça “Você está indo ou tá voltando?” !!!! Uma pergunta que, desde o literal da situação concreta do encontro entre as duas, também reverbera muitos outros sentidos, inclusive para o espectador, que, de modo fascinante, naquele momento do filme, não tem clareza nenhuma quanto a um “indo” ou um “voltando” racional seu dentro dos labirintos imagéticos e sensoriais que estão sendo propostos a ele.

A mesma coisa vale para aquele também ótimo, no mesmo sentido, “Eu me perdi” – quando acho maravilhoso me dar conta, de repente, que estou completamente perdido, sem saber se estou “indo ou voltando”, dentro de um filme.

Continuando, é preciso ressaltar que aprecio demais o perfeito timing para os silêncios. O encontro com a antiga amiga, na praia, um pouco mais adiante, onde há silêncios enormes, perguntas que não são respondidas ou o são muito laconicamente e depois de uma longa pausa. É impressionante como isso tem um efeito poderoso, que, em vez de afastar as duas entre si e o espectador delas, só nos aproxima, a todos, através dos nossos “interiores”.

Entre as duas amigas, também aprecio demais a sequência da preparação da guacamole, a parecer deliciosamente “improvisada” e, sobretudo, maravilhosamente não “significativa” de nada “essencial” entre elas.

Acho fantástica a coragem narrativa em fazer com que os capítulos se sucedam sem que respostas esclarecedoras sejam dadas, “histórias” preenchedoras de lacunas sejam fornecidas ou episódios – como o do encontro com a turma acampada na praia – “sirvam” para a obtenção, por parte do espectador, de “dados” que o “situem” ou lhe deem “chaves” óbvias de entendimento para o fundamental “não sei se estou indo ou voltando” que permeia todo o filme.

Simplesmente (e cada vez mais) detesto roteiros que fazem questão de articular cenas e sequências “funcionais” para o espectador. Nesse ponto, aproveito para introduzir alguns pequenos pontos negativos.

Como eu disse, gosto muito do desenrolar em espiral do filme, mas o tempo total dele, me parece, pesa um pouquinho na última meia hora, vinte minutos de filme. Apesar de esta sensação ter até diminuído na minha revisão e, nem na primeira nem na segunda vez, o filme ter chegado a me soar cansativo, continuo achando que uns quinze, vinte minutinhos a menos só fariam bem a ele, potencializando ainda mais seu impacto sensorial.

Uma das sequências que, a meu ver, cumpririam bem a tarefa de dar uma encurtadinha e, além disso, me pareceu um pouco destoante do resto é aquela (no Capítulo 4, “Interior”) do diálogo das duas amigas na casa, uma de costas para a outra, com um vidro opaco pelo meio. Acho-a um tantinho “dramática” demais, pelo conflito explicitado quanto ao suposto “abandono” ou esquecimento de uma pela outra e a mágoa subjacente. É a única cena em moldes mais dramáticos do filme e acho que ela não faria falta (pelo contrário) se não tivesse entrado no corte final.

Mais ou menos nessa linha, também não me agrada muito o encontro da personagem central com a índia do começo do filme, no mesmo Capítulo 4. Acho que, ao explicitar no plano imagético esse “encontro” – que já ficara sutilmente claro pelo paralelismo das duas, no prólogo e no Capítulo 1, a perscrutar, respectivamente, a mata e a casa da praia – o filme despotencializa uma sugestão que já ficara forte anteriormente.

A propósito da índia, também me ocorreu que, embora a figura tenha resultado impactante, principalmente pelo talento da atriz, a sua caracterização como “índia” me soou marcada demais, quase perto do caricatural. Acho que não precisaria do cabelo longo + a pintura tribal + o arco às costas + as penas + a saia longa de palha para a remissão ao universo da fábula da Tabatinga, apresentada no letreiro inicial do filme. Um pouco de economia a essa caracterização só faria bem e combinaria melhor com o tom nada over de todos os outros elementos.

Uma outra coisinha, de novo na mesma linha de eu preferir sempre menos “referencialização” a um suposto “real”, é que acho a canção dos créditos finais até bonita, mas um pouco óbvia na sua explicitação narrativa. Um pouco menos de “mensagem” final, e um pouco mais de laconismo e silêncio acompanharia melhor, acho eu, a nossa saída do mergulho.

Estes são detalhes que absolutamente não comprometem o filme, e são, antes de tudo, revelações das minhas preferências pessoais. Por fim, amo de paixão a opção pelo belíssimo preto e branco e a acho o trunfo fundamental da sua visualidade exuberante, mas maravilhosamente não “turística”. O engraçado é que, na tela do CineSesc, vi (ou QUIS ver e aí vi) em alguns detalhes de imagem uma ou outra corzinha, de leve (o tom rosa pálido dos enfeites do decote do vestido tirado do baú; o verde da vegetação no fundo do mar e mais uma ou outra), mas esse “efeito” não se repetiu na revisão… por que será!?

Riobaldo Tatarana

Crítico